quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Aos 60 anos, o bolachão não desiste

Achei por acaso este texto. Ele não é recente, é de maio de 2010, mas conta um pouco sobre a trajetória dos discos de vinil e sua indústria aqui no Brasil até esse ano em que foi publicado. Vinil ou CD, qual o melhor? Boa leitura!

Colecionadores, artistas e amor à tradição explicam sucesso dos discos de vinil


Por MAURICIO MONTEIRO FILHO, para o Portal Sesc

Para Ronoel Simões, o único som que interessa é o dos dedos de um solista sobre as cordas de um violão. Aos 91 anos, ele já tem tantas lembranças que se recusa a eleger alguma como a mais importante de sua vida. Mas é específico a esse ponto quando se trata dos timbres que o comovem. Tem que ser violão. Tem que ser de seis cordas. Tem que ser “pulsado a dedo”, como ele diz.

O apreço por esse tipo de música o motivou durante os 31 anos em que foi professor do instrumento, mas não o impediu de se tornar um rigoroso juiz de si mesmo. “Fui um guitarrista muito fraco. Não me dediquei ao violão, e por isso não me aperfeiçoei como solista”, afirma.

Ainda assim, ele não desistiu do dedilhado sobre as cordas de náilon ou aço. Pelo menos não como ouvinte. Desde 1953, na mesma casa onde vive até hoje, no bairro do Bexiga – berço do samba paulistano, a poucos quarteirões da sede da escola de samba Vai-Vai –, Ronoel realiza concorridos saraus, onde quem brilha são justamente os violonistas. No andar de baixo da residência, especialmente aos sábados, revezam-se antigos e novos talentos do instrumento, que não passam despercebidos aos ouvidos calibrados do dono da festa. “Tem um mocinho de 18 anos que vem aqui que tem a música no sangue. Toca com finura”, diz.

Os saraus continuam acontecendo até hoje, mas o maior legado de Ronoel tem muito mais acordes do que os desferidos durante esses encontros. Tamanha fixação pelo violão o levou, “por acidente”, a acumular um acervo de cerca de 7 mil discos de vinil, com apenas músicas que se enquadram nessa categoria. “Quando vi, já tinha bastante”, simplifica ele.

Seu arquivo de LPs acabou por torná-lo o maior colecionador do tipo em toda a América Latina. Mas seu Ronoel não é um purista quando se trata dos veículos de sua música. Desde que seja um “violão sério”, como define, ele prefere até a comodidade e a limpeza do som do CD. Por isso, tem também nesse formato boa parte dos álbuns que possui em vinil.

Ele nem pensa, porém, em se desfazer de seus velhos bolachões, nada práticos e cheios de chiados, pois sabe que é a coleção de LPs – e não a de CDs – que ganhou reconhecimento nacional e internacional. E é essa mesma a graça do disco de vinil: ocupa espaço, junta poeira, tem que trocar de lado em média a cada 30 minutos, mas sobrevive em meio aos tempos da música digital etérea e pirata dos MP3.

Muito mais que apenas uma mídia musical, um disco de vinil é uma expressão física do trabalho do artista, que começa nas capas e nos encartes. E, seja como símbolo de tempos mais felizes da indústria fonográfica, seja como passaporte para o mundo cool ou como pura teimosia de colecionadores obcecados, esse artefato ultrapassa os 60 anos de idade como uma realidade. E parece pronto para durar mais algumas décadas.

Retomada

As razões desse fenômeno são difíceis de explicar precisamente. O certo é que a indústria do ramo se deu conta dele e, no final de 2009, mostrou que o vinil pode ser um investimento rentável. Não dá para dizer, é claro, que, sozinho, ele conseguirá fazer frente às perdas causadas pela pirataria. Mas poderá amenizar os danos.

Em relação a 2008, as vendas de LPs nos Estados Unidos em 2009 cresceram 35%. Até novembro, 2,1 milhões de unidades haviam sido comercializadas por lá. No Brasil, lojas que trabalham com várias mídias registram ganhos maiores com a venda de vinis que com os formatos mais modernos.

Eric Crauford está imerso em discos desde que tinha 9 anos. Começou sua coleção comprando um de Elvis Presley, quando ainda morava em Londres. Chegado ao Brasil em 1972, ele contabiliza cerca de 50 mil vinis, contra apenas 80 CDs. As vedetes de seu arquivo são álbuns de rock’n’roll das décadas de 1950 e 60 e trilhas sonoras de filmes. Só nessa prateleira, ele tem 15 mil unidades.

Não contente com a coleção particular, Eric é dono de uma das mais tradicionais lojas do gênero em São Paulo, a Eric Discos, no bairro de Pinheiros. O negócio tem 32 anos de vida e 80% dos ganhos vêm da venda de discos de vinil.

O inglês, porém, pode se considerar um sobrevivente do ramo. Quando surgiu o CD, em meados da década de 1980, o comércio de vinis sofreu uma forte baixa. “Houve uma queda de 50% no mercado de LPs. Foi um momento ruim, e eu aguentei pela tradição que conquistei e pelos fregueses não só no Brasil”, relembra. Nesse período, que durou pelo menos dez anos, ele viu vários negócios do segmento fecharem as portas.

Hoje, acredita que o mercado se reaqueceu. “O vinil está voltando”, afirma. Ele acaba de chegar de uma de suas viagens frequentes ao continente natal, onde recarrega sua coleção e o estoque da loja. “A Europa está fabricando bastante. Sempre há relançamentos nesse formato”, aponta.

Estratégias como essa, de recolocar no mercado discos clássicos em vinil, são um dos trunfos das grandes gravadoras para estimular o mercado. A EMI lançará, em 2010, toda a discografia do grupo Legião Urbana em LP. A Sony não ficará atrás, inovando com a coleção intitulada oportunamente de “Meu Primeiro Disco”, que trará os álbuns de estreia de João Bosco e Chico Science & Nação Zumbi, entre outros, no formato.

Outro subterfúgio das gravadoras para aumentar a atração dos discos de vinil é investir em gramaturas superiores. Enquanto o peso das bolachas pode ser até de menos de 100 gramas, os grandes selos têm lançado versões de 150, 180 e até 200 gramas. Isso criou uma ilusão de que, nesse caso, peso é, sim, documento: quanto maior a densidade, melhor seria o resultado final em termos de qualidade sonora. Logo, esses produtos seriam um prato cheio para os ouvidos atentos dos audiófilos. “Isso é um comprovado mito. A rigor, a gramatura não influi em nada na qualidade, uma vez que a profundidade e a largura dos sulcos serão sempre as mesmas. Apenas o manuseio desses discos é muito mais legal que o dos normais”, afirma João Augusto, sócio da empresa Polysom.

Mas o grande pivô comercial do vinil ainda são os sebos. Nessas lojas de usados, os discos menos cobiçados ou em mau estado podem ser encontrados por pechinchas de R$ 1, enquanto outros mais bem conservados podem superar os R$ 100. Para raridades, como edições originais importadas dos Beatles, o céu é o limite. Entre os discos brasileiros mais procurados atualmente estão obras antigas dos Mutantes, de Gal Costa e de Caetano Veloso.

Os sebos do Brasil estão inseridos também numa rede global de troca de discos. O país atua nesse segmento, como em tantos outros, como fornecedor dos países ricos. Consumidores e comerciantes americanos, europeus e, especialmente, japoneses visitam os sebos nacionais em busca de gêneros tradicionais de música brasileira como a Bossa Nova e a Tropicália. “Os japoneses limparam o mercado. É mais fácil encontrar LPs de Bossa Nova lá do que aqui”, diz Crauford.

Alguns segmentos da crítica especializada parecem concordar com o otimismo do inglês quanto aos bons ventos do mercado de bolachões. Para Daniel Vaughan, repórter de música do portal R7, já existe um ressurgimento do vinil. E esse processo só não é mais democrático porque ainda exige investimentos altos por parte dos consumidores. “Devido à importação, tanto discos como vitrolas custam caro. O governo tem de baixar os impostos dos discos. E as gravadoras estão marcando bobeira: deveriam brigar por isso e então lançar um catálogo que tem tudo para vender aqui e no exterior”, afirma ele.

Vaughan, como a imensa maioria dos apreciadores de vinil, também é colecionador. De acordo com ele, atualmente seu acervo está bem menor do que já foi, depois de uma limpeza. Mesmo assim, sua coleção conta com 4 mil discos. “Hoje só fico com aqueles que ouço e de que gosto muito. Não me apego mais só pela raridade ou para deixar guardado, fazendo volume. O que mais tenho comprado são edições novas de clássicos do rock e LPs de bandas mais recentes. Cada álbum adquirido é um orgulho”, conta.

E, no caso dele, o gosto pelos bolachões não parou em seu acervo pessoal. Há cerca de um ano, por sugestão de um amigo que sabia do hobby, ele lançou um blog para se dedicar ao tema, com o autoexplicativo nome de Viva o Vinil. “Depois que iniciei o veículo, vi como as pessoas curtem os LPs. Pessoas de todas as idades, com gostos totalmente variados”, diz.

Renascimento

Outro grande responsável pelo fôlego novo do mercado brasileiro do vinil foi a reabertura de um autêntico patrimônio industrial nacional, que tinha encerrado suas atividades em 2007. Inaugurada em abril de 1999, a Polysom, fábrica de discos de vinil localizada no município de Belford Roxo (RJ), reinou sozinha no mercado por anos, movida basicamente pela demanda gerada pelas igrejas evangélicas, até que uma queda nas vendas e problemas técnicos levaram a empresa a fechar as portas.

Com isso, formou-se uma verdadeira legião de órfãos do vinil, que passaram a depender totalmente de importações. Atentos a esse público fiel e antenados com o crescimento desse mercado na Europa e nos Estados Unidos, os proprietários da gravadora carioca Deckdisc adquiriram a Polysom. Novamente em atividade desde o início de 2010, a fábrica é a única que produz LPs em toda a América Latina.

“Com capacidade inicial instalada de 28 mil LPs e 12 mil compactos por mês, a Polysom já tem planos, se tudo correr bem, de ampliar essa produção, que pode facilmente triplicar sem perda de qualidade. A empresa está sendo reativada em condições ideais para isso”, afirma João Augusto.

A reabertura da Polysom trouxe à tona um vocabulário industrial próprio, que parece cheio de palavrões perto da praticidade do CD, que pode ser facilmente reproduzido nos computadores pessoais dos consumidores. Mas, como tudo no vinil, parece ser justamente a complicação que torna o processo mais atraente.

O passo inicial na confecção de um bolachão é gerar um primeiro disco de acetato a partir da gravação. Dele, surgirão as matrizes que, num complexo ritual que envolve galvanoplastia, prensagem e acabamento, vai dar à luz os LPs, a partir de uma mistura de substâncias em que predomina o PVC. Tudo isso realizado por máquinas antigas – como prensas, compressores e motores –, algumas das quais nem sequer seguem sendo produzidas, e que tiveram que ser recuperadas para a reabertura da Polysom.

Todo esse esforço se justifica pela oportunidade. De acordo com João Augusto, estimativas dão conta de que há apenas 30 fábricas de vinil em todo o mundo. “Acho muito pouco, com a dimensão que se poderá alcançar se, por exemplo, aspickups voltarem a ser popularizadas”, analisa. “Estamos certos de que existe uma demanda, embora saibamos também que uma fábrica de discos passa longe de ser uma atividade lucrativa. Mas acho que conseguiremos atender o Brasil e mais a Argentina e o Chile, países onde o vinil é idolatrado.”

Há, porém, obstáculos no horizonte. O maior deles é o mesmo que esmaga o poder de compra da população brasileira: a carga tributária. É dela a culpa pelos altos preços finais dos discos produzidos por aqui. “O que faz o vinil brasileiro ser tão caro é uma das mais selvagens malhas de impostos do mundo. Para se ter uma ideia, 70% do custo final do produto são impostos, que começam na aquisição de matérias-primas”, queixa-se João Augusto. Por conta disso, o empresário projeta que os discos produzidos pela Polysom serão mais baratos que os importados, mas bem mais caros do que gostaria que fossem.

Os primeiros lançamentos previstos são títulos de quatro artistas representados pela própria Deckdisc: “Cinema” (Cachorro Grande), “Onde Brilhem os Olhos Seus” (Fernanda Takai), “Fome de Tudo” (Nação Zumbi) e “Chiaroscuro” (Pitty).

Lado B

Na contramão da euforia causada pela reabertura da Polysom e pelo aumento das vendas de vinis, Paulo Cavalcanti, editor da versão nacional da revista “Rolling Stone”, traça um panorama sombrio para o futuro do mercado de LPs. Paradoxalmente, ele também é um colecionador de discos. Seu primeiro álbum foi adquirido quando ainda era criança, com o próprio dinheiro, em 1969. Mas, há cerca de 20 anos, reduziu bastante o volume de compras de LPs. Não por acaso, foi nessa época que o CD começou a se popularizar.

Sua coleção ainda dispõe de 2 mil LPs. “Tenho algumas coisas legais. Mas parei de contar. Hoje, pego algumas gravações específicas para digitalizar”, conta Cavalcanti. Desde que freou as compras de vinis, canalizou os investimentos para CDs, e atualmente tem um acervo de mais de 10 mil títulos nesse formato.

Aos ouvidos de um aficionado de LPs, essa declaração pode soar como uma heresia. Mas Cavalcanti sustenta que ela deriva de uma visão pragmática das coisas. “Tenho 47 anos. Passei por tudo isso [o apogeu do vinil e o advento do CD]. Quem defende a volta do vinil é gente jovem, que não tem essa lembrança. O LP não é prático, além de ser custoso”, dispara. E completa: “Estou nas ruas. Não ouço nenhum ser humano normal dizer que vai comprar vinil. Não estou falando de rato de sebo. Pessoas com quem você tromba no metrô, com quem toma café, não estão comprando. Não gastam seu escasso dinheiro nisso.”

A avaliação de Cavalcanti parte da ideia, procedente, de que o vinil é coisa para poucos. De fato, somente a aquisição da parafernália necessária para a audição de discos – uma vitrola em bom estado, agulhas e boas caixas de som, sem mencionar discos bem conservados – significa um alto investimento, com que o brasileiro médio não tem condição de arcar. Isso gera uma elitização dos apreciadores desse formato.

E é justamente por isso que ele defende o CD. Em sua opinião, essa mídia permitiu uma democratização que os bolachões não conseguiram promover. Aliás, uma grande parte do culto atual ao vinil se deve à sua inacessibilidade. Com o boom do CD, aquelas bandas toscas de garagem que viravam verdadeiros mitos porque só tinham algumas poucas gravações em vinil passaram a estar ao alcance de todos.

Cavalcanti também é impiedoso ao lembrar a origem da grande maioria dos LPs que estão hoje disponíveis em sebos. “Quando chegou o CD, todo mundo se livrou de seus vinis, vendendo-os por até R$ 1. Hoje, estão recomprando esses discos por R$ 50, porque é chique tê-los”, afirma. Diante desse quadro, vaticina: “Os bolachões não vão voltar de jeito nenhum”.

Ouvido relativo

Seu Ronoel não tolera o som do plástico das palhetas contra as cordas do violão, mas prefere a limpeza do som do CD aos chiados do vinil. Enquanto isso, Eric Crauford afirma que os LPs produzem um som mais forte e puro.

Se não há acordo sobre o ressurgimento do vinil em termos de mercado, maior é a controvérsia quando se trata da comparação entre a qualidade acústica dos bolachões e a dos CDs. E, às vezes, há muito mais paixões pessoais do que ciência em jogo nesse campo. “Isso de o vinil ter som melhor não existe. O único som real é o da fita master[gravação original, a partir da qual são feitas as reproduções, seja em vinil, seja em CD]”, afirma Cavalcanti.

João Augusto defende uma visão oposta. “Um LP que teve o acetato bem cortado, as partes metálicas bem produzidas e a prensagem feita dentro dos padrões básicos tem o som infinitamente melhor do que qualquer MP3 ou coisa que o valha, porque não há compressão do som por processos digitais binários. No vinil, a sonoridade conserva uma profundidade que se perde claramente nos formatos digitais”, explica.

Se é discutível o papel da qualidade acústica como fator definitivo na sobrevida dos LPs, outros elementos podem explicar sua persistência. “A volta do vinil não tem a ver com saudosismo ou militância apenas. Há uma mística em colocar um LP para tocar. E os projetos gráficos ficam muito mais bonitos e elegantes em 31 x 31 cm [tamanho das capas de discos de vinil] que em 12 x 14 cm [medidas dos encartes de CDs]”.

Daniel Vaughan segue o mesmo raciocínio. “O vinil não é feito só para ouvir. Você tem toda uma arte envolvida no formato: som, capa, encarte, cores. Ele chama a atenção dos colecionadores.” Dessa forma, conquistando e reconquistando públicos por suas perfeições e imperfeições, o disco de vinil vem sobrevivendo como peça de museu nas estantes tanto de seus detratores como de seus apreciadores. Como um paradoxo feito de acetato e nostalgia, tão antiquado quanto sedutor, que se recusa a ser ultrapassado pela história.

Nenhum comentário:

Postar um comentário