No Brasil, a maioria acredita que sim, cervejas escuras só no inverno.
Ora elas são acusadas de doces demais, ora exatamente do oposto,
amargas demais. Em outras vezes, as cervejas escuras são apontadas
como muito fortes e, portanto, adequadas só para aquecer no inverno.
Acontece que nenhuma das alternativas anteriores é 100% correta. Mas,
no país em que loira é sinônimo de cerveja, fica até fácil entender
por que nascem tantas generalizações: falta conhecimento de causa.
Mais consumidas no mundo todo, as cervejas douradas do tipo Pilsen
assumem no Brasil um favoritismo disparado e enchem mais de 95 % dos
copos. “O brasileiro não tem o hábito de se expor aos diferentes tipos
que existem”, afirma Luciano Horn, mestre cervejeiro da Ambev, dona de
várias marcas, entre as quais Brahma, Bohemia e Caracu, além de
responsável pela importação de outras, como a belga Leffe. E a
variedade é imensa. “Entre claras e escuras, são 120 estilos de
cerveja”, diz o chef Eduardo Passarelli, estudioso do assunto e sócio
da Forneria Melograno, em São Paulo, que oferece uma carta da bebida
recheada com mais de 160 rótulos e considerada uma das melhores da
cidade.
Entretanto, se a maioria nunca foi além da loira gelada, como pode
saber o que há no campo das morenas? A verdade é que há de tudo, não
só exemplares da docinha Malzbier, a cerveja escura mais popular por
aqui, ou a seca e encorpada Guinness, irlandesa que é uma das marcas
mais famosas do planeta. Graças à diversidade, aliás, pode se
harmonizar um jantar inteiro com cerveja, sem pôr uma loira sequer na
mesa. É o que prova o menu elaborado por Eduardo Passarelli para esta
reportagem e as combinações propostas por ele e pela sommelier de
cervejas Cilene Saorin.
Até existe uma escala que regulamenta quais podem ser chamadas de
claras e de escuras. Isso, porém, diz pouco sobre uma cerveja. “A cor
é um conceito vago”, afirma Carolina Oda, do marketing da importadora
Tarantino, que trouxe para o país as cervejas americanas Anderson
Valley e Flying Dog e a belga Malheur. O que vale mais para quem
entende do riscado é outro tipo de divisão. Basicamente, há três
grandes grupos: Lagers, que são as cervejas fermentadas a baixas
temperaturas (em média, de 10°C a 12°C); Ales, a altas temperaturas; e
Lambics, criação belga de fermentação espontânea, à base de agentes
presentes no ambiente. Mas cada categoria tem seus subtipos. A já
citada Guinness, como a brasileira Caracu, é uma Stout, turma que faz
parte da família das Ales (confira alguns estilos no quadro Um mar de
opções).
Só para derrubar logo um mito, o teor alcoólico da Guinness é de 4,2%,
menor do que o de rótulos nacionais de Pilsen, como Brahma (4,8%),
Bavária (4,6%), Bohemia (5%) e Itaipava (4,5%). “Achar que as escuras
são mais alcoólicas, e por isso boas só para o frio, é um preconceito
enraizado”, diz Kathia Zanatta, sommelier do Grupo Schincariol, dono
de marcas como Nova Schin, Baden Baden, Eisenbahn e Devassa. “Acredito
que há um componente visual nessa conexão: a própria cor passa a
sensação de que elas são mais intensas e fortes.” Outra hipótese é que
as Bocks, lançadas por aqui como cervejas de inverno, tenham
influenciado a percepção geral do brasileiro em relação às escuras.
De acordo com o prato A base de todas as cervejas, claras ou escuras,
é igual. “As matérias-primas são as mesmas: malte, lúpulo, água e
levedura”, diz o mestre cervejeiro Arnaldo Luiz Ribeiro, da Germânia,
de Vinhedo (SP). “São os blends (misturas de maltes), o tipo de
fermentação, a maturação e outros detalhes envolvidos na produção que
criam a variedade”. Por exemplo, o malte, obtido da cevada ou do
trigo, pode ser torrado, e é isso que dá cor escura à bebida. “Como
ocorre com o café, há níveis diferentes de torrefação”, observa
Luciano. Quanto mais torrado, mais bronzeada será a cerveja. “O malte
ainda pode passar por outros processos, como defumação ou
caramelização. Se caramelizado, a coloração será avermelhada ou
amarronzada”, diz Carolina.
É comum sentir nas escuras toques de chocolate ou de café, embora os
ingredientes não estejam, em geral, presentes na composição. Mas podem
estar. Por exemplo, a Colorado Demoiselle, escura artesanal de
Ribeirão Preto (SP), que já foi premiada em concurso internacional,
leva mesmo café. “As possibilidades de aromas e sabores são muitas.
Podem aparecer também notas de frutas secas”, afirma Kathia.
Essas nuances são levadas em conta ao combinar cerveja com comida. O
critério pode ser o da semelhança. Assim, uma cerveja encorpada, forte
e cheia de personalidade casaria com pratos igualmente marcantes. Mas
também usa-se a lógica do contraste, com o objetivo de atenuar algum
traço da receita. “Então, pode-se escolher uma cerveja mais
refrescante para uma comida apimentada”, diz a sommelier Cilene. Como
nas harmonizações com vinho, o casamento é considerado perfeito quando
se consegue sentir que o sabor do prato foi valorizado pela cerveja. É
uma questão de treino. O que significa que é preciso permitir- -se
experimentar – tanto combinações, que podem até às vezes dar errado,
como vários estilos de cerveja. Sem nunca fazer distinção de cor.