Leia este texto por sua conta e risco. Isto é uma tentativa de lavagem cerebral que, se funcionar, vai fazer com que você abandone aquele líquido amarelinho e geladinho que as gigantes industriais chamam de cerveja pilsen. Os arquitetos da conspiração são a turma das cervejas artesanais. Elas podem ser aromáticas demais, encorpadas demais, amargas demais para o gosto do consumidor mediano. “É preciso dar um ctrl + alt + del mental e redefinir o que é cerveja”, diz Cassio Piccolo, dono do bar paulistano Frangó. Cabeça feita e paladar acostumado, o bebedor não volta mais para as loiras vulgares.
O complô está dando certo, visto que os arredores de Blumenau, Santa Catarina, passaram de zero a oito pequenos produtores em menos de uma década – incluindo a Eisenbahn, o maior caso de sucesso do Brasil (leia abaixo). Curitiba, Belo Horizonte e Porto Alegre também se tornaram polos de fabricação e divulgação da cerveja artesanal. Ao todo, estima-se que existam umas 200 cervejarias de pequeno porte no Brasil, todas querendo conquistar corações e notas de 100 do bebedor brasileiro.
Revolução é a palavra de ordem dos líderes desse movimento. Seu objetivo é mudar o padrão de consumo. Eles deixam claro que a pilsen pode até pagar as contas, mas a prioridade é outra. Seguindo os passos dos craft brewers americanos, os artesãos daqui apostam na diversidade de estilos. Alguns deles são clássicos da Bélgica ou da Inglaterra; outros são adaptações, fusões e pirações dos cervejeiros.
No meio de tanta variedade, dá para mapear algumas tendências regionais. As gaúchas Coruja e Abadessa, por exemplo, fazem o que eles chamam de cerveja viva: a bebida não-pasteurizada precisa ser refrigerada o tempo todo para não estragar. Em Minas Gerais, as cervejarias Wäls, Backer e Falke são conhecidas pelo bom trabalho com as ales de estirpe belga. Santa Catarina, por tradição ou tino comercial, joga muitas fichas no sotaque germânico. Algumas cervejarias do interior de São Paulo investem no marketing temático: a Colorado põe uma pitada de ingredientes típicos brasileiros (como mandioca ou rapadura) em seus lançamentos, enquanto a Bamberg propõe-se a seguir a Lei da Pureza em vigor na Alemanha desde 1516 (ela restringe os ingredientes da cerveja a água, malte e lúpulo).
E há Curitiba. A capital paranaense, tão certinha em tantos aspectos, é território livre para a criatividade dos cervejeiros. Lá se faz cerveja envelhecida em barris de umburana (madeira brasileira usada para armazenar cachaça), cerveja de trigo com amora, cerveja de estilo inglês com graviola, cerveja de pinhão de araucária… Culpa do pernambucano Samuel Cavalcanti, um químico descabelado e loquaz, com jeitão de cientista maluco. Ele se mudou para o Sul para fundar a Bode brown, misto de cervejaria, escola, loja de insumos e ponto de encontro.
O resultado disso é uma comunidade coesa de nerds etílicos que trocam receitas, experiências e risadas em torno de sacos de malte e copos cheios de cerveja recém-maturada. Lucro, quando vem, é efeito colateral. “Dos 100 litros que fazemos, bebemos 70 e vendemos 30 para amigos”, diz Murilo Foltran, um dos quatro camaradas que frequentam a Bodebrown e produzem as cervejas Dum. Elas têm marcas criativas como a Petroleum, uma stout de aveia com chocolate suíço, negra e viscosa. Os rótulos são ainda mais bacanas – a APU, uma american india pale ale, estampa o personagem homônimo do desenho Os Simpsons. Mas, por enquanto, a empreitada não é muito mais que uma brincadeira levada ao extremo no “parque temático” da Du º m, a área da churrasqueira nos fundos da casa de Murilo. No jargão dos cervejeiros, eles constituem uma nanocervejaria, menor que uma micro – a Tormenta, também de Curitiba, e a Drei Adler, de Blumenau, são outros exemplos de nano.
É assim que as revoluções começam. Foi assim nos EUA há 30 anos, quando a explosão do homebrewing se desenvolveu para o cenário atual, com 1599 cervejarias artesanais. “Todo cervejeiro caseiro sonha ser empreendedor”, diz o carioca Leonardo Botto, um diletante que se transformou em professor, consultor e principal guru da cerveja caseira no Brasil. Leonardo é um dos fundadores da Acerva Carioca, associação criada em 2007 para rachar as compras de matéria-prima, que na época só era vendida em quantidades industriais. Hoje o clube do Rio tem 77 membros e se multiplicou pelo país, do Rio Grande do Sul à Bahia (o site
acerva.com.br tem o contato das agremiações regionais). Fazer cerveja em casa – tarefa ainda penosa e suja – deixou de ser um pesadelo logístico, graças a gente como o Samuel, de Curitiba, que fraciona os insumos e os revende. Também não é mais preciso ser mestre-cervejeiro: há softwares para calcular as variáveis físico- químicas do sopão que um dia será bebida fina. “Qualquer um – dentista ou porteiro – pode fazer cerveja”, afirma Samuel. As redes sociais na internet têm papel fundamental: com elas, o intercâmbio de informações se dá em escala e velocidade antes inimagináveis.
Tudo indica que em breve teremos mais algumas dezenas de cervejarias abastecendo bares com rótulos de qualidade. E preços pouco convidativos, é verdade. Por que gastar nossos suados reais com eles, se há similares importadas com mais tradição e custo não muito maior? Cassio Piccolo, desde 1987 no ofício de trazer bebidas especiais para o Frangó, responde: “Cerveja não viaja bem”. Isso significa que o tempo do transporte, a luz e o calor nos navios e caminhões deixam a bebida bem pior do que aquela que acabou de sair da fábrica. As nacionais também viajam, mas viajam menos. É bom negócio levá-las para casa. Claro que se deixar levar até elas, beber direto da fonte, é negócio melhor ainda. Boa viagem.
Cervejeiros loucos, marqueteiros devassos e gigantes em roupa de anão
Existem dois perfis de pequenos cervejeiros: os que sabem fazer cerveja e os que sabem fazer negócio.
Os primeiros patinam em pontos cruciais, como marketing e distribuição; os últimos têm a irritante mania de entregar um produto pouco surpreen dente. No Brasil, só muito recentemente começou a aparecer gente que sabe fazer as duas coisas. “Os cervejeiros dos anos 1990 faziam cerveja para agradar o gosto do público, ou seja, pilsen fraquinha”, diz Juliano Mendes, da Eisenbahn.
A empresa que Juliano abriu com o irmão e o pai em 2002 – a primeira da região de Blumenau, cidade de ocupação alemã – foi um marco para as microcervejarias nacionais. Formado em administração e apaixonado por cerveja, ele foi fazer pós nos EUA, mais precisamente em Boston. Lá fi ca a Samuel Adams, uma cervejaria grande que investe em rótulos especialíssimos. O catarinense se inspirou na Sam Adams e visitou cerca de 50 cervejarias na Europa antes de abrir a Eisenbahn, que uniu um produto de qualidade inédita com uma estratégia de marketing impecável. Fez tanto sucesso que foi comprada pela Schincariol.
Outro case notável é o da carioca Devassa, de portfólio menos variado, mas com a “ishpertíssima” sacada de vincular cada estilo de cerveja a um estilo de mulher. Assim, a avermelhada pale ale virou Ruiva, a escura dark ale virou Negra… até que, também vendida para a Schincariol, lançou a Bem Loira, cervejinha comum que tinha a devassa máxima Paris Hilton como garota-propaganda.
Outra gigante a marcar território na seara das especiais é a AmBev, que usa a grife Bohemia para esse fim. Cassio Piccolo, do bar Frangó, diz que isso é positivo. “Ajuda a divulgar a cultura cervejeira para o público que compra em supermercado.” Se é assim… Bora beber no bar!
Veja reportagem completa e mais algumas recomendações na
VIP